segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Batel sem mar

 


Meu amigo, como dói

Ver você encalhado sobre incontáveis grãos,

Onde o mar tão imenso te destrói

Em ondas infinitas de sentimentos vãos.

 

Agora esquecido e abandonado,

Chora silencioso sobre seus restos mortais

Que nada valem em seu soturno fado

Das saudosas viagens imemoriais.

 

Meu velho tronco hoje sem forma,

Penso no seu grande valor de outrora

E na criatura desalmada e erma

Que te deixou aí um dia e foi embora.

 

Carlos Bianchi de Oliveira

Rio de Janeiro, 07 de dezembro de 2020.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O Livro da Vida

 

As primeiras páginas não escrevemos,

Outros fazem isso por nós.

Por não termos sequer voz,

Frágeis e dependentes é o que somos.

 

Mas o tempo segue seu curso,

E assumimos a escrita em dado momento,

Certos de certezas incertas no uso

Da vela que se abre ao poderoso vento.

 

Por fim, a história é construída

Com pontos, vírgulas e interrogações,

Edificando as laudas da vida

 

Para chegar ao nosso derradeiro destino,

Cheio de reticências, lacunas, monções,

O sono profundo de um velho menino.

 

Carlos Bianchi de Oliveira

Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2020.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Croniquinha 8: O Vendedor de Flores

Todos os dias, pela manhã, ao esperar pelo ônibus para ir ao trabalho, vejo aquele senhor voltando para casa com suas rosas frescas e belas, compradas bem cedo para serem revendidas mais tarde no ponto ali próximo, que dá acesso à via expressa. Admiro a disposição dele, pois precisou sair de casa enquanto ainda era noite para ir ao fornecedor e escolher as melhores flores, a fim de atrair o interesse dos seus clientes. Fico pensando também no seu senso de responsabilidade como provisor de sua família, visto que são poucas as rosas e um comércio de rua que precisa ser realizado diariamente para garantir a renda familiar. Já o vi, à noite, trabalhando no ponto com o casal de filhos, oferecendo as flores aos motoristas enquanto o sinal permanece fechado. As rosas continuavam belas, vendidas individualmente, não em buquê. 

Vejo muito lirismo nisso tudo. Eu mesmo já comprei suas rosas mais de uma vez. São flores solitárias, separadas das demais e entregues a alguém especial. São sempre rosas vermelhas, que remetem ao senso do carinho romântico quando entregues nas mãos de sua dona, a última que terá sua posse, e que irá tratar delas com um carinho especial. Foi uma longa e épica jornada desde o seu nascimento até o seu destino derradeiro. Imagino que, se tivessem consciência, essas obras-primas da natureza teriam o consolo de deixar o seu ciclo natural para servir a um coração apaixonado, ou para reafirmar um amor perene. Um desfecho virtuoso para uma vida tão curta e um destino reescrito por mãos humanas. Essas rosas deixam sempre uma mensagem para nós, não verbalizada, é verdade, porém, muito forte e profunda.

No meio desse intricado processo que vai além da razão está aquele homem, o meio que faz chegar a flor ao seu destino. Ele possui traços orientais e um comportamento bastante contido. Está sempre cabisbaixo. Nunca vi um esboço sequer de sorriso em seu rosto. Às vezes, fico a me perguntar se existe ali alguma consciência do sentido do seu trabalho em relação ao que cada flor tão bem escolhida representa para cada casal naquele dia. Sinto-me inclinado a acreditar que não, que para ele trata-se apenas de um negócio para sua subsistência. Não vejo poesia na forma como realiza seu ofício. Deveria haver? Não sei dizer. Levando em conta a dureza dos seus esforços para levar o pão de cada dia por anos a fio, se algum dia viu o seu trabalho por outro ângulo, isso deve ter ficado esquecido num passado já bem distante. Então, fico imaginando se algum dia ele chegou a escolher dentre todas as belas flores selecionadas a rosa mais especial, e entregou com todo carinho essa metáfora do seu amor à sua querida esposa. Visto que nunca saberei, prefiro acreditar que sim, que há um sentimento velado no cumprimento do seu nobre ofício.

Carlos Bianchi de Oliveira
Rio de Janeiro, 02 de junho de 2020