Eu nasci em 1966, cresci em um lar com valores distintos e, de alguma
forma, complementares. Meu pai respirou a ditadura militar. Vestia seus filhos
como soldados. Nossas roupas eram uniformes e nosso corte de cabelo nos deixava
com a aparência de recrutas mirins. Ele nos levava para conhecer
os equipamentos bélicos nas
anuais ExpoEx, e para assistir ao desfile militar todo sete de setembro.
Ele não era a favor
da violência gratuita, mas acreditava que o uso da força coibia a anarquia, a desordem social. Minha mãe sempre foi muito religiosa, e se preocupava em
ensinar aos filhos o caminho que leva à comunhão com Deus; a conhecer seu amor e sua ampla capacidade
de exercer misericórdia para com a
humanidade pecadora. Por isso, não cabia a ninguém julgar seu próximo, pois não havia um justo suficientemente qualificado para
isso. O julgamento cabe a Deus. Ao homem, fica a responsabilidade de zelar pela
respeito às leis e à moral para que
haja uma sociedade mais respeitável, honesta e
pacífica.
Conheci um mundo bem diferente do que vejo hoje. As
pessoas lutaram por liberdade e conquistaram muito do que defenderam. Só não
sei dizer qual dos mundos vividos foi o melhor. O rock n’roll
veio como uma avalanche na década
de 60. Beatles, Elvis Presley, Cely Campelo, Roberto Carlos. Dança e ritmo transgressores, juventude
transviada. Ser rebelde era o mote. No entanto, jovem solteira engravidar era
vergonha para a família.
Desrespeitar os idosos era algo abominável.
Pobre não
era sinônimo
de delinquente, pois havia honra e dignidade como valores para os de condição humilde que moravam na periferia e nos
morros.
Meu pai odiava os cabeludos, os que se vestiam
desleixadamente, que andavam arrastando os pés ou falavam gírias. Segundo ele, não eram bons cidadãos, mas uma ameaça à
moral e aos bons costumes. Algum tempo depois, já estava comprando o LP do cabeludo RC para
tocar na vitrola junto com Nelson Gonçalves.
O mundo muda porque as cabeças
mudam.
Nos anos 70, com a invenção da pílula anticoncepcional, o comportamento
sexual da mulher passou por uma mudança
inimaginável.
A televisão,
esse poderoso meio de comunicação
emergente, apropriou-se muito bem dessa mudança, dando a ela um tom libertário. Eu era uma criança, apenas uma criança protegida deste mundo pela censura doméstica quanto ao que era ou não lícito
assistir. As roupas femininas ficaram mais curtas, justas e decotadas. Ainda
assim, havia um momento de transição e
um choque cultural de forte intensidade. Mulheres com esse comportamento não mereciam respeito, assemelhavam-se às que vendiam o corpo nos becos escuros da
boemia.
Eu estudei em escola pública. Na época, era o melhor ensino disponível. Estudar em escola particular era
vergonhoso. Acreditava-se que essas escolas eram vias de escape para jovens
indolentes de pais abastados. Não
precisava muito esforço
para passar de ano, o dinheiro supria essa carência. Lembro-me das cansativas aulas de
moral e cívica,
hoje extintas. Também tínhamos aulas complementares de formação para música, trabalhos manuais e atividades
administrativas, com uso de formulários
contábeis.
Além
do Inglês,
tive aula de Francês.
Os professores eram muito respeitados e tinham autoridade para disciplinar os
alunos, com o aval dos próprios
pais. Presenciei alguns exageros, uso da violência e da disciplina vexatória. Hoje, uma realidade desconhecida e não tolerada. Atualmente, professores são vistos como serviçais que devem suportar toda forma de rebeldia
e desrespeito em silêncio
para preservar o emprego e, pior ainda, muitas vezes a própria vida.
Os anos 70 e 80 deram muita ênfase ao cigarro. Era rito de passagem e
sinônimo
de determinação.
Grande poder da propaganda! Jovens felizes, atletas, homens valentes, viris,
sedutores, montados em cavalos de pelo porte. Um lucrativo negócio e uma grande fonte de arrecadação de impostos. Logo vieram os efeitos
colaterais com saúde
agravada e morte prematura. Os legisladores trataram de bloquear a propaganda
enganosa, mas preservando o direito de escolha de cada um. Acho que o cigarro
foi o precursor das drogas.
A música
sempre foi uma influência
para a sociedade e um eco dela. Nos anos 70, ela enfrentou metaforicamente a
censura com letras muito bem construídas
para a MBP. Grandes nomes despontaram nos festivais e prepararam o terreno para
que seus filhos os questionassem nos anos 80 com o “Rock cabeça”.
Bandas surgiram como a voz da juventude reprimida, era o dualismo cego da
"geração
Coca-Cola" com seu controverso grito de liberdade. Eis uma questão complexa de se resolver: como uma geração se opõe ao poder instituído e a geração sucessora se opõe ao seu modo de ver o mundo? Parece que a
busca pela liberdade faz com que uma geração dê as costas para a outra, abandonando até mesmo o que havia de bom nela.
Lembro-me da sociedade alternativa, dos hippies, de
Woodstock, e do legado que deixaram para a geração seguinte. Tudo tem um preço a se pagar nesta vida. Com o passar do
tempo, aqueles jovens viraram capitalistas e ocuparam o espaço daqueles de quem discordavam para agir
de alguma forma do mesmo jeito, mas com outro discurso. Seus filhos não foram reprimidos quanto a fazer o que
causaria danos a si mesmo e a outros, e o mundo em movimento foi se
transformando.
Vieram com grande força as drogas psicotrópicas nos anos 70, tornaram-se mais fortes
nos anos 80 e sem controle daí
para adiante. As malditas drogas que oferecem grandes viagens psicodélicas destruíram a nossa juventude. O crime assumiu uma
nova cara, organizou-se no tráfico
e em facções
rivais. Um comércio
ilegal e lucrativo permeando todas as classes sociais.
Mas, para que o crime tome corpo, é preciso que existam corruptores e corruptíveis. Os novos intelectuais, aqueles
jovens dos anos 70 e 80, abraçaram
a causa e começaram
a viver uma vida dupla, sustentando o crime e a própria dependência e, ao mesmo tempo, pregando a repressão ao que é contra a lei. Ricos e poderosos, esqueceram-se
das novas gerações,
hoje vítimas
de uma realidade destrutiva e protagonistas de um mundo superficial e amoral. “Seus heróis morreram de overdose” e seus “amigos” “estão no poder”.
Os velhos jovens ocuparam cargos políticos, viraram empresários, assumiram o espaço midiático e propagaram um novo conceito de
vida. Seus filhos e seus netos carregam consigo esse legado. Hoje, somos
tecnologicamente avançados,
mas perdemos o respeito mútuo,
a estrutura familiar e a segurança pública. As gerações dos anos 90 e dois mil nasceram sob um
prisma multifacetado, globalizado, de relações
superficiais e egocêntricas.
São
as gerações
Bill Gates e Steve Jobs, X e Y, conectadas em redes virtuais e desconectadas do
mundo real.
E o que dizer da pornografia? É certo que ela sempre existiu, e que a
hipocrisia social mantinha esse aspecto da natureza humana velado, oculto dos
olhos inocentes de uma criança.
Só
que nossas crianças
perderam a fase pueril e mergulharam no mundo da sexualidade adulta sem
limites. Seria ter uma visão
muito curta não
acreditar que o aumento do número
de estupros, pedofilia, e gravidez na adolescência não está
associado ao zoomorfismo do sexo e ao consumo de drogas? Certamente que sim.
Nossas crianças
falam como adultos, pensam como adultos, vivem como adultos, sem a menor noção do que isso significa. Disse Oswaldo
Montenegro em uma de suas canções:
"Nossa geração não quer sonhar, pois que sonhe a que há de vir." Infelizmente, um desejo
ainda não
realizado e algo que o Google não
tem permitido que aconteça.
Voltando ao assunto da pornografia, como uma droga viciadora que provoca o
desejo de consumo de outra ainda mais pesada, vieram os vídeos bizarros de sadomasoquismo, de sexo
grupal, de incesto, de estupro coletivo, de relação entre pessoas do mesmo sexo, de
bestialidade. Com tanta exposição
ao que não é natural, não nos surpreende que as mulheres e as
crianças
sejam vistas por seus predadores como mero objeto de satisfação dos seus desejos mais sombrios e
nefastos. Muitos desses monstros modernos foram um dia pais e avós amorosos, bons chefes de família, cidadãos honrados.
A música
mudou, empobreceu sua estrutura de versificação e depravou-se. A dança deixou de ser algo animado, romântico, exuberante, para se transformar em
um ritual de acasalamento. A televisão
está
cada vez mais apelativa, pois precisa concorrer com o lado sombrio da Internet.
Ladrões
não
mais se satisfazem em subtrair os bens de suas vítimas, é preciso humilhá-las, seviciá-las e tirar delas o que têm de mais precioso, a própria vida. Então, que mundo é o melhor? O da repressão ou o da liberdade sem responsabilidade?
Estou inclinado a crer que nenhum dos dois, pois o primeiro era como uma bomba
construída
para armazenar um poder destrutivo, e o segundo, a detonação dela.
Carlos Bianchi de Oliveira
Rio de Janeiro, 05 de maio de 2014
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